As flexões de André Martins, por Ana Amália Alves

Ana Amália Alves

O André é um artista. O André morava com a mãe. Só ele e a mãe. A mãe do André morreu. Jefferson aguentou junto, foi seu ombro, amante e melhor amigo. O Alfredo chegou. A irmã se reaproximou. A empregada continuou. O João ficou por perto, só que de longe. Agora só Alfredo na casa, Maria duas vezes por semana, e André. De vez em quando chegava alguém. Essa pessoa tirava a roupa e André tirava fotos. Essa pessoa era sempre alguém próximo de André. André e essa pessoa tinham uma história. As fotos contam um pouco dessa história. A nudez tem a ver com a morte da mãe. André sozinho com seus pelados. Alfredo viu tudo. A casa é mais dele. Alfredo não poderia existir se a mãe estivesse viva. A mãe não deixava André ter animais. André era muito sozinho. De pequeno, brincava no hall do prédio. Ficava escondido dentro do sofá e dizia que estava “fazendo teatrinho”. André criava ações em sua mente de menino. Coisas aconteciam lá. André é uma personagem criadora.

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Dentro do Projeto Flexões, cinco ensaios têm um sentido autobiográfico para André Martins. Intitulada Minhas Flexões, essa parte apresenta ao público personagens que se fizeram fundamentais na vida dele. Algumas foram também responsáveis pela a própria existência e confecção final deste projeto. Todos, de alguma forma, revelam-se como partes do próprio André – são suas flexões. André aparece pluralizado nas imagens desses sujeitos que estão na base de seus pensamentos cotidianos e de suas memórias mais antigas, profundas e íntimas.

Em Minhas Flexões, a temática é a remontagem das relações pessoais do fotógrafo, que buscava revelar o que há de mais escondido nessas ligações duradouras e alcançar a verdadeira nudez de cada uma dessas personagens. As fotos desta sessão explicitam questões muito pessoais de André Martins e destes cinco fotografados:

– Jefferson, o namorado que ele tinha quando começou a fotografar os pelados. Seria ele quem escreveria um texto para cada ensaio desse projeto, caso não tivessem terminado;

– Carolina, a irmã do André. Pousa com roupa, e logo mais explico o porquê;

– Maria, a empregada da casa dele. Também está vestida;

– João, o ex-namorado que motivou muita coisa sem saber. É quem faz a diagramação das fotos com os textos aqui;

– Alfredo, o cachorro dele (que era do Jefferson também);

Podemos incluir nessa lista também Madalena, a mãe do André, que não aparece em nenhuma foto, mas que, de alguma forma, está presente em todas.

 

 

A mãe do André morreu

 

Na primeira noite em que sua mãe se foi, André sentiu o vazio. As paredes brancas do apartamento incomodavam muito. Chorando, ele abria as caixas de fotos antigas e pregava com fita crepe, desde o chão até o teto, as imagens de todo mundo que lhe fazia falta. Encheu a casa de fotos. Conviveu com elas por algum tempo, depois trocou por outras. Depois por outras. Até que as fotos que ele tinha começaram a se repetir e ele se empenhou em tirar novas. Desde então, André é fotógrafo. E convive com a falta da mãe.

André afirma que a pele, a nudez, o que há de mais natural e escondido no ser humano foram símbolos que ele precisava buscar em sua vida após a morte de sua mãe. Assim, fez cerca de oitenta ensaios com pessoas que queriam tirar a roupa para ele, geralmente em sua casa, nos momentos de folga. Depois dos primeiros corajosos, ficou mais fácil. André postava no facebook “Quero tirar fotos hoje!” e logo algumas pessoas respondiam, pedindo para serem elas a da vez. No meio destas sessões, André fez as fotos das cinco personagens que compõem Minhas Flexões. Estas, porém, tiveram a nudez revelada de outras formas.

Com a morte da mãe, André repensou as suas relações mais íntimas. Mas não apenas isso: precisou tirar fotos delas. Logo veio o ensaio de Jefferson. André manteve a irmã e a doméstica de roupa e as fotografou também. O cachorro, que já vive sem vestimentas, ganhou uma gravatinha e um ensaio só para ele. João voltou a ficar nu para André, e foi o último ensaio feito para o Projeto Flexões. Além disso, para alguns destes cinco, André escreveu textos – alguns em forma de cartas, outros como uma página de diário em que ele faz suas confissões, outros mais próximos à narrativa de ficção.

Em um e-mail, eu quis saber mais sobre a diferença que se deu para ele ao fotografar sujeitos com quem tinha grande intimidade. A resposta dele foi:

 

 “Na verdade todos os retratados tiveram alguma relação com a minha vida. Alguns muito mais, coisa de vida inteira, e outros que eu não conhecia, mas que eu tinha algum interesse neles. Então todos me excitavam de alguma maneira. Esses especificamente do Minhas Flexões formam um quinteto poderoso. São amores que surgiram de diferentes lugares e têm diferentes funções na minha vida, e eu na deles. Então o processo de fotografa-los é muito mais cuidadoso e emocional, muito mais do que uma busca da nudez física. Nos homens, por terem sido amantes, tenho o encontro com o corpo, desnudo, e com as mulheres tenho o encontro da projeção da minha mãe falecida. Todos eles se encontram neste lugar por onde minha mãe passou. Cada um tem uma história independente comigo, mas todos eles foram retratados após a morte dela, então era inevitável essa reflexão. Com eles eu me despi também. Eu provoquei com eles as histórias pessoais e coletivas. São lembranças em forma de retratos. Eu os registro para gravá-los na minha história. É algo mais de necessidade vital”.

 

Como pode ser visto, André assume o tom confessional sobre todo seu processo criativo. Ele é tão aberto sobre as questões pessoais que o encaminharam ao Projeto Flexões que quase nos esquecemos que estamos falando sobre um trabalho artístico, de criação.

Como o pano de fundo são questões autobiográficas, em Minhas Flexões, André parece ter buscado representar as próprias relações que mantinha com essas cinco personagens. Ou seja, primeiramente como ator, André fotografou cenas que ilustravam aquilo que já existia, porém dando uma nova forma. Buscou os símbolos daquelas relações e colocou-os nas fotos de tal modo como que se, despreocupadamente, formassem um cenário, ou melhor, dessem dicas de tempo e espaço ao espectador. Quem vê essas fotos, vê um panorama da ligação entre o fotografado e o fotógrafo. Mas não um panorama da vida cotidiana, como se visse os álbuns guardados nos armários de André. O que consta nestas fotos são os símbolos mais íntimos (e, por isso, às vezes não tão óbvio para o espectador) entre duas pessoas.

 

 

André é uma personagem criadora

 

É muito importante entender que, mais do que memórias, André está fotografando representações dessas memórias: criações. Se de pequeno sentia que a vida não tinha novidades suficientes e precisava criar verdadeiras tramas em sua mente de menino, já adulto passou a fazer, pela fotografia, algumas experiências de vida. Por isso, ao escrever em sua mão o apelido que dava ao João (Meu Bolo Fofo) e posicioná-la no rosto dele, André está no limite entre guardar uma memória e recriar uma experiência (já que ele e João já não formavam mais um casal). Também quando aproxima a irmã dos símbolos da mãe, André salva na lembrança tanto os objetos pessoais da mãe quanto a imagem da irmã nos meses após o falecimento da mesma, mas também cria a experiência da reaproximação com a irmã, que hoje é sua amiga.

Logo, exatamente nesse limite entre realidade e ficção, podemos ver os cinco fotografados também no limite entre pessoa e personagem. André parece transpor com muita naturalidade objetos, roupas, nomes, lugares e pessoas que pertencem ao seu universo simbólico mais íntimo para o universo da fotografia. Seguindo a tendência da nova fotografia, que cria uma imagem ao invés de apenas tirar uma imagem, a estética de André, em Minhas Flexões, é de cunho altamente autobiográfico. Porém, como podemos perceber em uma certa vertente das artes visuais e da literatura contemporânea brasileira, esse caráter autobiográfico é também, em certa medida, ficcional. Ora, por representar a si mesmo, o viés autobiográfico precisa ser visto, logicamente, como representação. O que precisamos prestar atenção é em como André consegue criar imagens e se auto-representar.

Embora não vejamos nenhuma foto de seu corpo ou rosto nestes cerca de oitenta ensaios, André consegue falar de si. Ele está aqui, neste livro todo. E sua presença é gritante.

Representar relações não é algo fácil. Trata-se de um acontecimento sempre em mutação. André parece apropriar-se das mutações e das permanências das relações, apresentando-nos imagens que podem indicar ambas ao mesmo tempo. E é justamente neste limite que encontramos o André: a pessoa do fotógrafo criador, e também o personagem principal desta história toda. Sua pessoa é, portanto, indissociável de sua personagem.

Quando afirmo que André parece escolher exatamente o limite entre a pessoa e a personagem (dele e de seus fotografados), é porque, em suas fotos, não há a criação de uma distância necessária para que vejamos o fotografado como uma personagem total. Nem há a intenção de chegar a tal. A preocupação formal para a criação tradicional de personagens é justamente o que está sendo rompido nas fotos de André. Isso porque, embora as cenas sejam criadas, elas são também vivências experimentadas por ele e o fotografado. De igual modo, os objetos pessoais presentes nas imagens formam uma situação que pode ser tanto fictícia e originada naquele instante, como também uma representação da relação cotidiana existente entre o fotografado e André. Assim, embora as pessoas estejam, de algum modo, atuando, elas estão atuando como elas mesmas. E, além disso, elas estão atuando como elas mesmas em relação a André.

Quando arte e vida se misturam, é quase impossível querer distinguir o que foi real e o que foi criado com intuitos meramente artísticos. Como os poetas marginais, uma das maiores expressões brasileiras dessa indissociação, André também não se preocupa com os academicismos ou as técnicas convencionadas do fazer artístico. Aliás, quanto mais longe dessa discussão ele estiver, melhor. André vive a arte como um processo pessoal, deixa isso bem claro. Sem medo de ofender quem pense que arte é um trabalho meramente de raciocínio lógico e transpiração, André faz fotos no limite da sensação e da emoção, em um processo de inspiração pessoal que durou mais de dois anos.

Se o julgarem por isso, dizendo que ele não conseguiria desafiar a estética fotográfica contemporânea, ou o que quer que isso venha a ser, e que suas fotos são muito mais amadoras do que profissionais, André já estaria precavido: “Eu não sou fotógrafo”, ele diz. Em um e-mail, quando eu perguntei sobre algumas influências de artistas e movimentos sobre suas fotos, ele até me contou que:

 

“Não sei citar artistas específicos, mas por ser tão cinéfilo creio que minhas maiores referências estão na imagem em movimento do que propriamente na fotografia. Talvez por isso a minha busca por um diálogo imediato com as fotos. Tento fazer com que as imagens sejam inícios de discussões. Por isso acho que não me assumo fotógrafo, pois apenas utilizo a linguagem da fotografia. Me coloco sempre em um lugar bem comum, gosto de ser um profissional possível. Quanto menos vanguarda, quanto menos artístico for considerado meu trabalho, melhor. Tento criar provocações rápidas, nada muito duradouro, mas com o objetivo de criar uma discussão com estes fragmentos contínuos.”.

 

Como ele próprio, muitos dirão que as fotos dele parecem bastante naive, ou caseiras mesmo. E são. Essa é uma das suas maiores marcas. Só não podemos concluir que, por isso, são amadoras. Não são amadoras porque não se trata aqui de alguém que estava muito preocupado em aprender a tirar fotos corretamente e que estava ainda em um processo inicial de aprendizagem. O André definitivamente não estava preocupado com as formas corretas, institucionalizadas e legitimadas de tirar fotos. Ele tirou fotos porque ele precisou disso. É um processo dele com ele; não dele com uma técnica. Dizer que as fotos de André são amadoras é o mesmo que dizer que André é amador com ele mesmo. E isso não faz sentido. Muito pelo contrário, ele foi um expert sobre ele mesmo e sobre suas relações com pessoas cruciais em sua vida. Trata-se de fotos-coragem. Fotos-eu. Fotos-pele. E têm histórias lá. O André cria umas narrativas e umas cenas muito interessantes, de tal maneira mescladas com suas experiências de vida, que não sabemos se o que vemos é o que acontecia mesmo no momento em que ele estava com a pessoa ou se é apenas imagem que ele montava na hora. Ele é ator, sabe representar.

O enquadramento que ele busca não vem discutir a opressão exercida pela forma retangular desde os primórdios da era fotográfica, mas vem emoldurar uma cena, como fazem o chão, o teto e as cortinas laterais de um palco. A luz que ele deixa agir tampouco questiona os princípios da sombra e as possibilidades de infinitude dos contornos, mas deixa visível a naturalidade da pele do fotografado, dos objetos rapidamente escolhidos, da relação entre aquela pessoa e André sendo revivida no espaço de sua casa. Quando muito, ensaios em preto e branco vêm dar um clima retrô, indicar uma época e seus costumes, como no ensaio em que Jefferson monta-se pela primeira vez de mulher – um rito de entrada em um novo universo sendo registrado com as únicas cores possíveis do início da tecnologia visual, o preto e branco das primeiras máquinas fotográficas.

Quando lhe perguntei sobre algumas dessas questões técnicas, André deu a seguinte resposta:

 

“Raramente o que sai é o que eu espero. Às vezes surgem boas surpresas, e, outras vezes, decepções. Pois a satisfação de uma boa foto para mim vem da escolha certa de direção de arte, luz e principalmente direção do retratado. Busco sempre encontrar nele algo de pulsante e/ou dilacerante, e nem sempre isso acontece. Seja pela falta de empatia ou pelos fatores do dia mesmo. Não preparo muito as sessões, tenho apenas um guia e me ponho a improvisar com o retratado durante a sessão. Acho que a foto ficou boa quando ela encontrou alguma estrutura provocadora, alguma textura relevante, como se pudéssemos passar a mão e que com aquele toque alguma sensação surgisse, normalmente sensações mais guturais, mesmo que as fotos sejam sempre mais claras. Acho algumas das minhas opções estéticas, por vezes, meio infantis, meio primárias, mas justamente para tentar tirar alguns lugares ocultos e colocá-los na luz exposta e transformá-los em assuntos menos proibitivos”.

 

 

Se compararmos a essa passagem em que ele discute o seu próprio fazer artístico com um texto que André escreveu na ocasião do término de seu relacionamento com João, poderemos ver como é profunda a mescla das suas questões estéticas com suas questões pessoais:

“Hollywood nos oferece uma vasta cartela de cenas românticas, porém subverta-as, escolha um cenário simples e um bom roteirista, aposte em uma interpretação visceral, porém não melodramática, enfim seja independente. Quando falo destas escolhas, não é para ser artificial. Existe um objetivo claro para realizar esta cena, não é? Então, estruture-a, e deixe lacunas para o improviso”.

 

 

Como as esferas do teatro e do cinema assumem-se fortemente nas experiências artístico-fotográficas de André, e pelos relatos dele sobre suas questões pessoais, parece-me que a principal técnica que devemos ter para adentrarmos esta parte de seu universo imagético é a de escutar e assistir com atenção a história que o personagem-criador André nos conta. Para podermos experienciar profundamente essas imagens, não devemos apenas nos ater às especificidades técnicas desse fazer fotográfico. André exige um espectador participante tal qual uma plateia ou alguém que ouve uma história sendo contada. Somente agindo assim poderemos chegar aos símbolos que parecem guiar as escolhas do André-fotógrafo no momento de suas criações-representações.

 

 

A nudez tem a ver com a morte da mãe

 

A fotografia de André está intrinsecamente ligada a uma necessidade vital pela pele, a uma produção contínua e insaciável de imagens da nudez do outro e da nudez de sua relação com o outro. A câmera é sua ferramenta, aquilo que lhe possibilita guardar os momentos efêmeros dessas experiências tão suas.

Assim, a mãe parece estar colocada como base simbólica, escondida do público, mas também sempre presente. André lida com os símbolos que a morte dela acabou por revelar como cruciais. Ou seja, a nudez, segundo André, passou a ser uma necessidade, embora ele não saiba exatamente explicar o porquê. Algo de liberdade, da curiosidade de ver e sentir a pele. De novo, vemos como tudo está muito mesclado para poder ser explicado apenas como um projeto de pesquisa sobre as formas da fotografia. Porém, devemos ter claro como, exatamente por isso, André discute uma das questões estéticas mais próprias da fotografia: o limite entre o registro concreto e a narratividade ficcional.

Por isso, ao invés de debruçar-se sobre a imagem concreta da mãe, André explora uma memória muito remota e sensorial que tem dela: a sua pele, o contato, a carne de onde veio sua própria carne. Ele está apontando para essa naturalidade que nos forma, essa ligação parental e tão primeira de um bebê com o mundo. Essa mesma que, com o crescimento e a consequente entrada no mundo simbólico, passamos a encobrir com roupas, acessórios e maquiagem, a fim de consolidarmos o nosso eu no grupo social. Ele despe os fotografados, tira deles as roupas que os escondem deles mesmos.

Porém, em Minhas Flexões, André agrega objetos e roupas, a fim de mostrar não a pele dessas cinco personagens, mas de representar sua ligação carnal com elas. É como se esses mais próximos a ele já estivessem suficientemente nus a seus olhos. Com os cinco, ele cria outras experiências, como a da reaproximação e da entrada em outros padrões, chegando ao mais emocional e sensorial do que há entre eles.

 

 

Maria

A empregada Maria tem a nudez apresentada como aquilo que André nunca pode ver: a casa dela, a vida em um bairro distante, seus cabelos soltos, suas roupas de passeio. A nudez de Maria é tudo que está escondido quando ela está vestida e atuando como empregada. André tira-lhe o papel de doméstica, mostra-nos o invisível de Maria: sua nudez como pessoa para além das relações de trabalho.

E assim, pelo registro da vida invisível de Maria, André consegue colocá-la, para o espectador, no limite entre pessoa e personagem. Também é a partir dessa sessão que surge na própria vida de André a experiência do contato com Maria e o descobrimento do verdadeiro papel dela em sua vida. O texto a seguir foi escrito por André ao fim dessa sessão:

Descosturando a bainha

Chega às nove horas todos os dias. Troca a roupa da rua pela roupa da casa. Verifica as peças que tem para lavar, para passar. Pensa qual será o almoço. Carne moída com batata, peixe frito, frango a milanesa, macarrão com atum, linguiça com purê ou arroz com espinafre. Limpa os banheiros, depois um quarto, o outro, o outro, a sala, e por último a cozinha. Desde sempre ela come sentada em um banquinho, com seu prato na mão. Antes tinha mesa na casa, mas mesmo assim ela comia no banquinho. A ex-patroa se desesperava querendo encontrar outro lugar mais cômodo para ela comer. Depois o novo patrão, filho da ex-patroa, que se tornou falecida, vendo aquela espiã comendo no banquinho, deu a mesa inteira para ela. Hoje ele come na mão, sentado no sofá, em um ângulo que consegue ver o pé dela balançando, comendo sentada no seu banquinho. Essa espiã observou a vida do patrão, órfão rapaz, durante mais de 13 anos, viu desde a época que a mãe dele morava com o pai dele e que dele não era nada mais que um incômodo. Viu o primeiro “amigo” que ficava trancado dentro do quarto, de porta sanfonada. E no meio de uma sanfonada, uma irmã nervosa tentava encontrar um espaço além leste. Outra sanfonada, uma mãe calma e febril tentava engolir um pai jogador de futebol. E outra dupla sanfonada um casal de adolescentes tentava descobrir um amor difícil de engolir. E ela seguia seu observar, no meio das ações domésticas ordinárias. O apartamento mudou, houve a separação, o pai ficou para trás. A irmã domada trocou a periferia pela luz da burguesia, e a mãe passo firme pisou em falso e morreu. Sobrou a espiã e o menino. O menino casou com outro, e se separou do outro. Ela se bifurcou – trabalha na casa de ambos. Antes de ficarem sozinhos, a espiã pouco falava com o menino. Depois que a senhora passou dessa para um lugar que não sei como é, o silêncio na casa era mais aflito. Ela sabia muito dele, mas não haviam estabelecido de que maneira se comunicariam dali em diante. Naquela casa o vento falava mais forte. Então esse menino se casou com aquele, que era um falante, um perguntador, que criou todas as pontes, escancarou todas as dúvidas, e que depois de um tempo bom, acenou se despedindo. Novamente ele e ela. Aprenderam a conversar entre o tirar o pó e o fazer a lista do supermercado. Ela agora fala da vida, dos horários da escola do filho pequeno, das peripécias do cunhado mal ajambrado, e ele fala dos apertos, principalmente dos apertos. Ele um dia, depois de mais de uma década, foi conhecer a casa dela, e lá estava a mesa, na sala, quase uma obra de exposição, intocada. Ele a observou, engoliu uma saliva pesada de questões mal resolvidas, e conheceu os outros cômodos. Um quarto, o outro, o banheiro, o outro e a cozinha. Resolveram comer pela primeira vez juntos, na cozinha dela. Conversaram frente a frente, apoiando suas mãos na mesa dela. Ele naquele dia fotografara a espiã e sentiu que a amava. Todos os dias, quando chega por volta das 14 horas, ela vai embora. E ele pensa que agora ela é a dona da mesa. Esqueci de uma breve informação. Esta mesa foi comprada pela mãe dele, e era seu orgulho que um dia todos se sentassem juntos ao redor dela, como uma família feliz. Mas a família não era assim. O que se poderia fazer?

 

Carolina

Como Maria, Carolina, a irmã, tem sua nudez expressa de outra forma e é também uma continuação da imagem da mãe de André. Carolina aparece interagindo com os objetos da mãe: a máquina de costura, retalhos de véu, a placa de oficial de justiça. Mostrar a pele de Carolina, portanto, é diferente de mostrá-la nua. André fotografa a irmã apropriando-se das coisas da mãe como uma criança que brinca com as roupas e objetos deixados desordenados na casa pelos pais quando saem para trabalhar. Assim, registra a íntima relação de Carolina com a mãe deles, ao mesmo tempo em que nos revela um pouco de quem era, o que fazia e do que gostava a pessoa-personagem mãe de sua história. Além disso, esse ensaio serviu como uma experiência de reaproximação dos dois irmãos que, até a perda da mãe, não mantinham maiores relacionamentos.

Como os irmãos passaram a ser mais próximos, é como se André estivesse eternalizando a imagem de compartilhamento daquela mãe e, agora, daquela falta eterna. Carolina é a imagem feminina da permanência da mãe na vida de André. Sua irmã. Sua igual na dor. A única que, com roupas ou sem, sentia aquela mesma mãe. Aquela que, hoje, é a maior proximidade física de André com a mãe. Carolina, para ter a nudeza revelada – a nudeza em relação à vida de Andre, não nos esqueçamos – transveste-se dessa mãe-amor-maior, causa e origem de todos os ensaios presentes nesse livro.

 

Alfredo

O cão, que já vive nu, foi minimamente vestido para a ocasião das fotos. Ganhou uma gravatinha borboleta. Com ela, é fotografado junto a brinquedos, como se fosse mais um. Também com ela é posicionado ao centro da foto e posa como um verdadeiro troféu. Em outra ocasião, é deixado com seus pelos macios e brancos de forma solitária no meio da rua de concreto duro. Alfredo é um ser que só existe porque a mãe de André se foi. É uma pele com pelos, o conforto de uma companhia muda, um alguém agora sempre presente na casa.

Alfredo chegou quando Jefferson e André eram um casal e ganhou o sobrenome dos dois papais: Alfredo Martins Puff. Como filho de uma relação que chegou ao fim, ele é fotografado ao lado de um retrato dos pais em uma época feliz. Alfredo parece rir com o retrato, ao mesmo tempo em que, de olhos fechados, encara carismaticamente a câmera.

Além de um símbolo da ausência da mãe, o cão é também a tentativa de uma nova formação de família na vida de André. Assim, tem papel fundamental na história e também vira uma pessoa-personagem. Seus olhos e boca são fotografados muito próximos da câmera e sua voz pode ser ouvida em um dos textos de André:

 

“A gente sabe o que é certo, mas fazer o errado também é essencial para quebrar a rotina do que é certo. Tô cansado dessas expectativas que eu tenho que ser dócil o tempo tudo. Hoje comi 2 colas prits sem dó!”

 

“Eu fiz o que muitos gostariam de fazer, caguei no meio do corredor do Shopping Higienópolis. E mole!”

 

“Hoje cocei minha bunda no chão. Meu pai se assustou. Veio correndo passar lenço umedecido em mim. Me ameaçou dizendo que se eu estiver com verme ele ficará muito irritado. Logo pensei: por que no lugar de um lenço umedecido ele não me lava de uma vez? Os pais têm essa mania de ir resolvendo aos poucos os problemas, e depois que a bosta fede a culpa é nossa.”

 

“Um dia estava correndo na rua e ainda não tinha consciência do meu corpo, apenas sentia o prazer de correr. Corri tanto e bati minha boca na calçada. Um tufo de pelo voou, e machuquei meus lábios negros. Na hora não parei de correr, nem reclamei de dor. Até hoje tenho uma marquinha na boca, mas continuo com o mesmo pensamento. Nunca vou frear os meus momentos desejosos, mesmo que machuque um pouco.”

 

“Ando devagar porque já tive pressa. Sempre fui bem revoltado. Fui tirado da minha mãe, vendido, castrado, e vivo preso numa casa com um suposto pai homossexual. Já rasguei dinheiro, comi batente de porta, rabisquei todo o chão com lápis de olho, espalhei xixi na sala. Hoje já aceito meu destino de ser quem eu sou. A maturidade me fez bem.” Alfredo Martins Puff

 

Jefferson

O ensaio de Jefferson é, na verdade, um rito de passagem. André conta que pessoalmente sempre foi muito aberto à exploração do seu lado feminino, mas seus namorados, por alguma razão, não. Com Jefferson, André incentivava a abertura dele a esse outro universo tão evitado pelos seres masculinos, héteros ou homos, das culturas machistas.

Essa experiência marcante, de travestir o namorado, foi no segundo ensaio com nudez que André fez (o primeiro tinha sido com um amigo, de maneira mais descomprometida). Por Jefferson ter sido uma pessoa-personagem fundamental na vida de André, vemos que o Projeto Flexões se iniciou, realmente, a partir deste ensaio. As fotos inaugurais que vemos aqui deixam claro como a pele e o corpo nu foram necessidades ao mesmo tempo pessoais e estéticas para André em seu Projeto Flexões.

 

João

O Projeto Flexões termina com a reaproximação de João, o namorado que André sofreu por ter perdido. André o fotografa, mas agora com outras preocupações: sem mais a necessidade anterior pela pele, pelo contato dos corpos, pela nudez. Ele, que foi uma grande paixão, tem sua imagem recriada agora em lindas memórias em forma de retrato.

Ou seja, o último ensaio do Projeto Flexões, contrariamente aos iniciais, foi marcado, para André, não mais pela busca frenética pela pele e pela nudez, mas pelo esvaziamento que essa temática tinha alcançado. André parece indicar, com esse último ensaio, que sua arte fotográfica vai caminhar, a partir de agora, na direção de uma maior criação sobre a realidade que o rodeia, ou seja, que a discussão do limite entre realidade e ficção permanecerá como uma questão principal e tomará outros caminhos.

Para finalizar, deixo um texto de André na época do namoro com João. Aqui ele faz declarações, ao mesmo tempo em que, como já disse, revela sua visão estética do mundo:

Tudo um pouco parecido com o real, e como o sábio diz: o importante é acreditar! Um é namorado de um, outro é amante do outro, e todos esses homens de cinema são amores-brincadeiras, porque o ordinário mesmo que é bom. Esse é aquele amor primeiro, do filme de amor proibido. Esse é namorado dos sonhos, porém é um sonho bem distante daquele que eu quero que seja o real. O real eu já tenho, e não é feito de impossibilidades. É bom demais para ser um sonho. Ele não é dos garotos photoshops, ele visto de perto é o mais lindo dos imperfeitos. É lindo, lindo! Dele não tenho inveja, tenho só vontades. Não quero ser ele, quero ele pra mim. E ele é. Já foram esgotadas várias formas diferentes para nossas declarações, e não seria diferente, já que o caminho fácil nem sempre é nossa primeira escolha. Vou vasculhar e encontrar novas maneiras para dizer eu te amo, porque a vontade nunca passa. Então em nome de Jake Gyllenhall, te digo: EU TE AMO, sempre mais colorido, do que os pálidos homens feitos de mentira.

Às vezes me sinto um rei decadente, quando sento e algo mais do que juntas se dobram, ou quando deixo de me olhar no espelho… mas no movimento, no olhar seguro, na boca fria, ainda me sinto daquelas das antigas, impenetráveis. Um pouco de diva mulata, com o ar cândido das de fora, e com a alma queimada das de dentro. Já sou personagem, com já prevista morte prematura. Sou da geração 80, onde não só um palhaço como ele existia, assim como seu comparsa travesti. Salve Vovó Mafalda! No fundo sou sempre o mesmo personagem, o que muda são as histórias, mas até as mais trágicas viraram comédia. Muitos amigos se perderam, não sou de conservar, e não é por que eu quero. Sou feito de uma matéria sozinha, sempre quis aquela bola só pra mim. Menino classe média que só veste marca cara. Menino de cabelo curto que sempre quis pentear o cavalo da She-ra. Menino triste que vive fazendo careta. Eu finjo que sou o que eu gostaria de ser. Minha infância não foi desamparada, mas foi amparada por poucos. Deixo as bonecas para o passado. Não construí minha vida na mentira, ou no aperto. Fui atrás dos meus quereres, e levei meus amores comigo. Assumi que odeio carros de corrida, e eles aceitaram. Durante muito tempo eu observei mulheres maravilhas, mães passionais, irmãs revoltadas, tias cansadas, avós deitadas, homens cambaleantes, pais desenganados, avôs distantes, cunhados perdidos e sobrinhos cuidadosos. Um dia eu me encontrei com uma mulher e com um homem, e a partir de então, ninguém mais me impede de nada, apenas me ajudam a pentear juntos a mesma peruca.